Sunday, May 27, 2007

Intimista de binóculos

Noutro dia, não tão remoto como o nosso tradicional "era uma vez...", alguém que até agora muito prezo, apelidou-me intimista de binóculos, com uma interpretação que deixo ao critério de cada um, como essa pessoa deixou ao meu.
Neste meu intimismo progressivamente analista à distância, agora que deambulo diariamente pela capital deste nosso "à beira mar plantado", tenho vindo a deleitar-me com literaturas consuetudinárias, ou daquelas que jorram do "Metro" ou do "Destak", e que confluem nas nossas cabeças e fervilham como que no caldeirão do João Ratão. Num destes dias, lia precisamente num desses jornais gratuitos, que as nossas forças de segurança, deslocadas num desses destinos que nada têm de paradisíaco, e em exercício para a ONU, ficaram sem direito a férias, assim, sem qualquer justificação plausível. Repentinamente, espelhou-se na minha memória o que lera em "A filha do Capitão" de José Rodrigues dos Santos, sobre as férias sempre adiadas dos nossos paupérrimos soldados (ou será mais justo apelidar todos esses escalões de cabos "carne para canhão"?) em missão na Primeira Guerra Mundial. Ironia ou talvez não, ainda hoje os portugueses têm o mesmo destino, e na luta pelos direitos humanos, acabam por ser esquecidos alguns... os direitos daqueles que a incarnam...

Sunday, May 20, 2007

"Il faut porter en soi un chaos pour mettre au monde une étoile dansante." (Nietzsche)

Sou um caos e, no entanto, é nos intervalos desse caos que a vida é uma hecatombe... Chovem risos, acendem-se corações, incrementam-se sonhos e empolam-se idealismos. Isto é só o início da minha caótica indefinição. Depois, eu mesma, a de sempre, à parte os anos que me acrescentam, porque dizem que o tempo passa para todos, embora eu continue a jurar que o tempo só passa para quem deixa que a alma envelheça.
Caos à parte e nada sou, porque nesse caos encontro-me consciente ou inconscientemente contigo, sem que o saibamos. Deixo-te um beijo num envelope selado, pendurado na tua porta, e corro, fujo não sei de quê, no fundo talvez de ti, e talvez corra para os teus braços cantantes.
Não, não sou irreverente, sou uma mera malabarista, de circo em circo, de cena em cena...

Friday, May 11, 2007

como se fosse

Sugo cada compasso da vida como se fosse o penúltimo, respiro como se amanhã só pudesse respirar poucas mais vezes. Como é bom ter tempo para sentir a primavera florir, o roçar das flores na liberdade airosa de pétalas alheias. Já não faltas, porque nunca estiveste. Já não me lembro do roçar das rendas, nem do calvário das esperas nem daquelas noites ao relento lacrimejante na expectativa de um qualquer, mesmo escasso, sinal de fumo Já nem lembro se amavas ou se tudo não passou de uma mera casualidade circunstancial... Défices de memória à parte, prefiro sentir o que é meu, o que não é, o que possa vir a ser, o que nunca o será... porque "pensar é estar doente dos olhos" e amar é uma simulação constante de acidente...

Sunday, May 6, 2007

Ajudas a custo

Abaixo ao sensacionalismo, às dores de barriga, aos corações partidos.
Abaixo àquilo que dizes ser o amor... bah, quais eventos sociais, quais clubes de futebol, quais casórios fachada. Amar é lindo... e ser amada, já me passou pela cabeça, mas já não lembro se pelo coiro..

Saturday, May 5, 2007

...gosto de o ser



Trago no ventre o futuro e na memória o passado. No coração o amor para dar e no peito o alimento por tragar.
Porque gosto de ser... mulher!


Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais dourada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.



Eugénio de Andrade (1923 - 2005)
"As mãos e os frutos"

A malfeitora palavra

Há uma palavra, só uma, arredia, indecisa, malfeitora. Deixa-nos sempre na incerteza, oculta-nos milagres e transparece sonhos nublados. Apetece-me detestá-la, mas não posso, por constar do meu vocabulário diário e, pior, do daqueles que me rodeiam. Ela está em todo o lado, nos cigarros pendurados em lábios azulados, nas bocas desdentadas, nas bocas amareladas e até naqueles cérebros de ranhoca esverdeada onde o pensamento é estancado pela ardente corrupção e pela vontade de não o ter. Não se associa ao amanhã e muito menos é eleitora do ontem, mas estende-se a todas as urnas, embacia todas as rosas dos ventos e avaria todas as bússolas.
Como é que nós ainda nos deixamos empregá-la? Como somos descuidados, na desgarrada vocabular! Talvez nem seja de propósito ou até nunca tenhamos pensado nisso...

Tuesday, May 1, 2007

Meditações de frigorífico

Seria tão mais fácil abdicar desta racionalidade que só atormenta...ou deste coração que mais parece uma vítima da leis da gravidade, qual desconfortável maçã de Newton...
Sem amar nem pensar quão inocente e pura seria a vida, sem emoções exacerbadas, quão calma e suave... Imagine-se, como um passarito, voa no seu anonimato, na ingenuidade das tarefas mais básicas, não será feliz? Ou como o empertigado gato, mesmo com o fardo da gestão das suas sete vidas, se não tirará mais lucro desta vida.
Mas não, não fui digna dessa oportunidade que só aos escolhidos é atribuída. O meu fado é mais duro, mais intenso, mais ingrato...deram-me racionalidade (aquela incómoda capacidade de pensar nas coisas, mesmo naquelas que não me apetece e até naquelas que fazem parte de um futuro que nem sei se alcançarei...)...deram-me um coração (deve ser de uma marca registada muito particular, ou então um achado não digno de museu; tendencialmente aberto, mas sofredor; incómodo por se entregar e incómodo por errar por isso mesmo) e deram-me o sexo feminino (uff, e aqui, apesar dos progressos, ainda há muito por palmilhar, andamos na peugada das ideias e na sombra de passados que se acreditam conquistados...naifismos). Resta-me uma dignidade, tão pouco apreciada, contudo, meu alento diário, o amor às letras. Não tenho nada contra os números, em regra até temos diálogos mutuamente enriquecedores. Mas das letras, e do amor ao próximo que cada uma delas me transmite, não consigo abrir mão. São elas que me ilustram, quais tutores particulares... E, ironia das ironias, nada me garantem, os presságios acumulam-se... Qual mágoa por descobrir...